sábado, 27 de agosto de 2022

Cannabis


Neurologista revela benefícios da cannabis no tratamento de esclerose múltipla

Camila Pupe é professora adjunta
 de Neurologia Geral, Doenças Neuromusculares e Dor Neuropática na UFF. (EuFoto: Divulgação)ADRIANA CARDILLO | 26 AGO 2022

Lidar com os desconfortos dos sintomas da esclerose múltipla (EM) é um dos maiores desafios de quem convive com a doença, que hoje afeta cerca de 40 mil brasileiros, de acordo com o Ministério da Saúde. No mundo, estima-se 2,8 milhões de casos.

A esclerose múltipla é uma enfermidade crônica, autoimune e inflamatória que afeta o sistema nervoso central (encéfalo e medula espinhal). Nela, o sistema imunológico, responsável por combater agentes externos como vírus e bactérias, ataca a bainha de mielina dos neurônios, por isso se diz que a doença é desmielinizante. Essa bainha de mielina funciona como a capa de um fio elétrico e, sem ela, as funções dos neurônios ficam prejudicadas.

A progressão da doença acaba gerando sintomas que chegam a ser incapacitantes. É nesse contexto que o uso da medicina canabinóide tem ajudado essa parcela da população a ter uma qualidade de vida decente.

De acordo com a neurologista Camila Pupe, PHD em Neurologia e Neurociência na Universidade Federal Fluminense (UFF), vários pacientes, mesmo com o tratamento com drogas altamente eficazes, têm necessidades não atendidas, como dor, fadiga, insônia, espasticidade (que trazem tensão, rigidez, aumento dos reflexos dos tendões e incapacidade de controlar os músculos), além de distúrbios urinários, ansiedade e depressão.

“Para o tratamento dos sintomas relacionados à doença, sejam sequelares ou associados, o papel dos canabinóides benéficos para muitos pacientes. Entre os ganhos que notamos está a melhora do sono e das dores, tanto as neuropáticas, com as faciais ou as parecidas com fibromialgia”, relata a especialista.

Ela ressalta que estudos comprovam a atuação da cannabis nos tratamentos de sintomas que impossibilitam uma vida com qualidade e que, a longo prazo, é possível que o tratamento seja relevante no desenvolvimento da doença, uma vez que os canabinóides têm ações neuroprotetoras e anti-inflamatórias.

“Sabendo que a EM é uma doença tanto inflamatória como degenerativa, faz sentido do ponto de vista da fisiopatologia da doença usar canabinóides no tratamento”, avalia Camila.
Melhora inegável na qualidade de vida
Camila conta que muitos neurologistas se surpreendem especialmente com um aspecto do tratamento com cannabis na EM: os exames de imagem não apresentam grandes diferenças após a utilização da planta, mas os relatos dos pacientes atestam a eficiência da terapia.

“Em geral, o paciente nota que está melhor, andando melhor, usando menos apoio. Essa melhora é subjetiva nos exames, mas para o paciente é evidente”, conta a médica.


“O ganho na qualidade de vida é grande e não podemos subestimar. Se o paciente está dizendo que se sente melhor, que está vivendo melhor, quem somos nós, neurologistas, para dizer o contrário.”

O uso da cannabis na esclerose múltipla não é necessariamente uma novidade. De acordo com Camila, há mais de 40 anos que se sabe do uso dos canabinóides para tratar a espasticidade na EM.

“Isso já tinha sido relatado, mas ficou no ostracismo até há pouco mais de dez anos. Hoje, sabemos que o tratamento com a cannabis não substitui os medicamentos que mudam o curso natural da EM, reduzindo a taxa de surto e o grau de incapacidade, mas é uma terapia sintomática importante para as necessidades não atendidas.”

Desde 2018 o tratamento à base de maconha para tratar espasticidade e dor na EM é autorizado pelo FDA (Food and Drug Administration). Neste mesmo ano, chegou ao mercado um medicamento conhecido como nabiximol, com CBD e THC, as duas substâncias mais conhecidas da planta, na proporção de um para um.

Vendido na farmácia com receita controlada, o medicamento chegou ao Brasil custando caro: cerca de R$ 2.800, em média, por três ampolas de 10 ml.

Contudo, outros medicamentos à base de cannabis se tornaram mais acessíveis e possíveis de serem importados legalmente. Com isso, entraram no radar dos médicos interessados em se aperfeiçoar e oferecer opções seguras e eficientes aos pacientes, como Camila.

“Por conta das opções que agora temos disponíveis, é possível modular a dosagem de acordo com a real necessidade do paciente. Por exemplo, consigo começar o tratamento com uma dose menor de THC para o uso constante e ir aumentando de acordo com a queixa. Se o relato for de dor e espasticidade mais intensa, posso associar o gummie (administração em forma de bala) de THC puro”, explica a neurologista.

Outra especialista nos estudos dos fitocanabinóides, a médica brasileira Mariana Maciel, fundadora da Thronus Medical, biofarmacêutica canadense pioneira em nano THC e nano CBD, explica que usadas juntas, as substâncias potencializam os resultados.


“O uso dos dois fitocanabinoides em associação apresenta um efeito superior para pessoas acometidas pela esclerose múltipla. Isso acontece porque o canabidiol (CBD) funciona como anti-inflamatório e anticonvulsivo, enquanto o tetrahidrocanabinol (THC) age como analgésico, antidepressivo e estimulante de apetite”, explica Mariana.

“Juntos, os ativos auxiliam no combate a dores neuropáticas, fadiga, enjoos e náuseas, e podem agir sobre quadros de depressão, que infelizmente são comuns em pessoas acometidas pela doença”, completa.
Doença pouco conhecida

A EM ainda é pouco conhecida no Brasil, tanto que uma pesquisa da AME (Amigos Múltiplos pela Esclerose), ONG que contribui para a busca do diagnóstico precoce, para tratamento adequado e para melhora na qualidade de vida dos pacientes, mostra que 80% dos brasileiros não sabem o que é a esclerose múltipla.

Até mesmo o que desencadeia a condição ainda é mistério para médicos e cientistas. Já se sabe que múltiplos fatores ambientais e genéticos estão associados a fisiopatologia da doença, ou seja, ao risco de desenvolver EM.

Hoje o diagnóstico da EM é feito por exclusão e a condição atinge geralmente pessoas jovens entre 20 e 40 anos de idade, sendo mais predominante em mulheres. Para aumentar o conhecimento sobre a doença, a AME instituiu em 2014 o “agosto laranja”.

Por causa desse contexto complexo, o tratamento com canabinóides precisa ser feito com atenção pelos especialistas.


“Tratar com a cannabis não é tão simples, pois para termos resultados efetivos precisamos considerar diversos fatores, ouvir o paciente, levar em conta os sintomas subjetivos dele e ajustar a dose que se adequa à queixa”, esclarece Camila.

Outro cuidado importante, segundo a neurologista, é estar atento à interação medicamentosa, uma vez que muitos pacientes fazem uso de benzodiazepínicos e calmantes para melhorar os sintomas.

Para ela, aliás, este é um dos aspectos mais positivos do uso dos canabinóides: poder retirar medicamentos que trazem efeitos colaterais oferecendo alternativas seguras:

“Se a pessoa está com um sintoma urgente e pode se beneficiar da cannabis para contê-lo, não tem porque não usar”, declara.
Camila Pupe é professora adjunta
 de Neurologia Geral, Doenças Neuromusculares e Dor Neuropática na UFF. 


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