quinta-feira, 18 de junho de 2015

Entendendo o diagnóstico de Esclerose Múltipla



A esclerose múltipla é uma doença crónica do sistema nervoso central de natureza inflamatória e desmielinizante para a qual não há ainda qualquer marcador de diagnóstico específico. Assim, desde a sua descrição por Charcot no século XIX, o diagnóstico assenta classicamente nas características clínicas (sintomas, sinais, evolução, remissão, entre outras), desde que excluídas outras doenças neurológicas que melhor possam explicar o quadro de cada doente.

Mais tarde, com o avanço da Medicina e o aparecimento de alguns exames subsidiários, foi sentida a necessidade de estabelecer critérios que ajudassem a estabelecer o diagnóstico.

Foi em 1965 que Schumacher e colaboradores publicaram os primeiros critérios de diagnóstico, que ainda hoje continuam a ser uma referência para os neurologistas, de entre os quais se salienta: existência clínica de lesões traduzindo disfunção primária da substância branca (mielina) disseminadas no tempo (dois ou mais episódios com duração superior a 24 horas, separados por um mês) e no espaço (atingindo regiões diferentes do sistema nervoso), num doente entre 10 e 50 anos e evidência de alterações objectivas no exame neurológico verificadas por médico competente.

Poucos anos depois, já na década de 70, os avanços tecnológicos em Medicina disparam : surge a tomografia computorizada como expoente máximo na imagiologia, são efectuadas técnicas mais apuradas para detectar alterações imunológicas no líquido céfalo-raquidiano (LCR) - bandas oligoclonais restritas ao sistema nervoso, indicando síntese de anticorpos - e a neurofisiologia é enriquecida com os potenciais evocados (visuais, auditivos e somatos-sensoriais). Isto explica que em 1983, 18 anos depois do estabelecimento dos primeiros critérios, Poser e colaboradores tivessem integrado as alterações nesses exames, designadas por evidência “paraclínica”, nos novos critérios - o TAC, idealmente com dose dupla de contraste, mostrava (raramente, é certo, devido à sua pouca definição) lesões hipodensas na substância branca, caracteristicamente periventriculares, o LCR evidenciava bandas oligloconais de imunoglobulina G, e os potenciais evocados ajudavam, tal como o LCR, a demonstrar a natureza desmielinizante do processo mediante o aumento nos tempos de latência dos traçados. Resumidamente, o doente era classificado como tendo esclerose múltipla:

A) clinicamente definida, mantendo-se os critérios clínicos anteriormente em uso aos quais se adicionava a evidência paraclínica;

B) clinicamente definida com suporte laboratorial caso o LCR fosse positivo;

C) clinicamente provável sem ou;

D) com suporte laboratorial, quando as alterações clínicas e paraclínicas eram mais ténues.

Estes critérios tiveram um impacto mundial enorme, de forma que a esmagadora maioria dos trabalhos publicados sobre esclerose múltipla até à data referem “o diagnóstico foi estabelecido segundo os critérios de Poser e colaboradores” como aconteceu, por exemplo, com os ensaios clínicos com os corticoesteróides, os interferões, as imunoglobulinas e o acetato de glatiramero. Neste período, surgem também diversos estudos de referência com revisões de grandes séries clínicas sobre as formas de evolução da doença - surto/remissão, primária progressiva, secundária progressiva, benigna, aguda - e sobre a história natural da doença.

Mas a Ressonância Magnética cedo substituiu o TAC no estudo da esclerose múltipla (e não só), ao revelar de forma detalhada a existência de lesões desmielinizantes mesmo de dimensões muito reduzidas, não só à volta do sistema ventricular mas também no tronco cerebral, no cerebelo e na medula espinal e ao demonstrar a “actividade” das lesões com padrões característicos de captação de contraste. Aparecem então inúmeros trabalhos de correlação entre a clínica e a imagem, com definição dos achados característicos da doença por diversos investigadores como Paty, Fazekas, Fillipi e Barkhof. Nos ensaios clínicos acima mencionados, é também a RM o exame universal para apreciar a evolução das lesões. Paralelamente as exigências da prática médica tendem a ser, e bem, cada vez maiores e mais aperfeiçoadas; há novos medicamentos, há novas doenças cujo diagnóstico diferencial importa excluir, há também maior informação junto do público em geral.

Em 2000, Thompson e colaboradores publicam critérios para o diagnóstico das formas primárias progressivas, já que importa testar fármacos mais eficazes nestas situações: definitiva, provável, possível. Tudo isto levou a que investigadores de todo o mundo tivessem unido esforços, desde há cerca de 2 anos, para definir novos critérios de diagnóstico, cuja publicação por McDonald e colaboradores ocorreu em 2001, curiosamente decorrido outro período de 18 anos após o trabalho de Poser. Nos novos critérios continuam a valorizar-se as características clínicas da doença (quase que inalteradas desde Schumacher) e define-se de forma objectiva o que significam RM, LCR e potenciais evocados “positivos”. Com base nestes critérios o doente é classificado de forma simples como tendo, ou não, esclerose múltipla, havendo lugar à categoria “possível” caso persistam dúvidas, o que por si só impõe a repetição dos exames com periodicidade definida. Também são implicitamente apontadas as técnicas de boa execução da RM (aparelho com boa definição, incidências correctas, aplicação de contraste) e da pesquisa de bandas da IgG no LCR (focagem isoeléctrica). Para além disso, o que é muito importante, dá-se ênfase à possibilidade de diagnosticar a doença nas formas monosintomáticas (por exemplo doentes que tiveram episódios únicos de nevrite óptica ou de mielite), permitindo desde logo o seu tratamento precoce com drogas que modificam o curso natural da doença.

Crê-se que este estudo representa um grande passo no diagnóstico mais correcto e mais precoce de muitos doentes, permitindo uma abordagem terapêutica mais segura. Por outro lado, responsabiliza os serviços de saúde na capacidade de resposta dos exames subsidiários que devem ser realizados sempre que necessário, em tempo útil, e segundo os melhores padrões. Por sua vez, os doentes devem estar bem informados e preparados para dialogar com o médico assistente, procurando partilhar as dúvidas nos resultados dos exames: onde foi efectuada a RM? Como foi descrito o relatório? O LCR foi submetido a focagem isoeléctrica? Quem interpretou os resultados das “bandas”? Daqui por quanto tempo é necessário repetir a RM? Já fiz a bateria de exames necessária para excluir outras doenças? Por fim, têm também os doentes o dever de informar o médico sempre que surjam novos sintomas, quiçá alertando para patologia diferente ou concomitante do sistema nervoso.

Prof.ª Dr.ª Maria José Sá
27 de Abril de 2002
Fonte: ANEM

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