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A esclerose múltipla é uma doença crónica do sistema nervoso central de
natureza inflamatória e desmielinizante para a qual não há ainda
qualquer marcador de diagnóstico específico. Assim, desde a sua
descrição por Charcot no século XIX, o diagnóstico assenta classicamente
nas características clínicas (sintomas, sinais, evolução, remissão,
entre outras), desde que excluídas outras doenças neurológicas que
melhor possam explicar o quadro de cada doente.
Mais tarde, com o avanço da Medicina e o aparecimento de alguns exames
subsidiários, foi sentida a necessidade de estabelecer critérios que
ajudassem a estabelecer o diagnóstico.
Foi em 1965 que Schumacher e colaboradores publicaram os primeiros
critérios de diagnóstico, que ainda hoje continuam a ser uma referência
para os neurologistas, de entre os quais se salienta: existência clínica
de lesões traduzindo disfunção primária da substância branca (mielina)
disseminadas no tempo (dois ou mais episódios com duração superior a 24
horas, separados por um mês) e no espaço (atingindo regiões diferentes
do sistema nervoso), num doente entre 10 e 50 anos e evidência de
alterações objectivas no exame neurológico verificadas por médico
competente.
Poucos anos depois, já na década de 70, os avanços tecnológicos em
Medicina disparam : surge a tomografia computorizada como expoente
máximo na imagiologia, são efectuadas técnicas mais apuradas para
detectar alterações imunológicas no líquido céfalo-raquidiano (LCR) -
bandas oligoclonais restritas ao sistema nervoso, indicando síntese de
anticorpos - e a neurofisiologia é enriquecida com os potenciais
evocados (visuais, auditivos e somatos-sensoriais). Isto explica que em
1983, 18 anos depois do estabelecimento dos primeiros critérios, Poser e
colaboradores tivessem integrado as alterações nesses exames,
designadas por evidência “paraclínica”, nos novos critérios - o TAC,
idealmente com dose dupla de contraste, mostrava (raramente, é certo,
devido à sua pouca definição) lesões hipodensas na substância branca,
caracteristicamente periventriculares, o LCR evidenciava bandas
oligloconais de imunoglobulina G, e os potenciais evocados ajudavam, tal
como o LCR, a demonstrar a natureza desmielinizante do processo
mediante o aumento nos tempos de latência dos traçados. Resumidamente, o
doente era classificado como tendo esclerose múltipla:
A) clinicamente definida, mantendo-se os critérios clínicos
anteriormente em uso aos quais se adicionava a evidência paraclínica;
B) clinicamente definida com suporte laboratorial caso o LCR fosse positivo;
C) clinicamente provável sem ou;
D) com suporte laboratorial, quando as alterações clínicas e paraclínicas eram mais ténues.
Estes critérios tiveram um impacto mundial enorme, de forma que a
esmagadora maioria dos trabalhos publicados sobre esclerose múltipla até
à data referem “o diagnóstico foi estabelecido segundo os critérios de
Poser e colaboradores” como aconteceu, por exemplo, com os ensaios
clínicos com os corticoesteróides, os interferões, as imunoglobulinas e o
acetato de glatiramero. Neste período, surgem também diversos estudos
de referência com revisões de grandes séries clínicas sobre as formas de
evolução da doença - surto/remissão, primária progressiva, secundária
progressiva, benigna, aguda - e sobre a história natural da doença.
Mas a Ressonância Magnética cedo substituiu o TAC no estudo da esclerose
múltipla (e não só), ao revelar de forma detalhada a existência de
lesões desmielinizantes mesmo de dimensões muito reduzidas, não só à
volta do sistema ventricular mas também no tronco cerebral, no cerebelo e
na medula espinal e ao demonstrar a “actividade” das lesões com padrões
característicos de captação de contraste. Aparecem então inúmeros
trabalhos de correlação entre a clínica e a imagem, com definição dos
achados característicos da doença por diversos investigadores como Paty,
Fazekas, Fillipi e Barkhof. Nos ensaios clínicos acima mencionados, é
também a RM o exame universal para apreciar a evolução das lesões.
Paralelamente as exigências da prática médica tendem a ser, e bem, cada
vez maiores e mais aperfeiçoadas; há novos medicamentos, há novas
doenças cujo diagnóstico diferencial importa excluir, há também maior
informação junto do público em geral.
Em 2000, Thompson e colaboradores publicam critérios para o diagnóstico
das formas primárias progressivas, já que importa testar fármacos mais
eficazes nestas situações: definitiva, provável, possível. Tudo isto
levou a que investigadores de todo o mundo tivessem unido esforços,
desde há cerca de 2 anos, para definir novos critérios de diagnóstico,
cuja publicação por McDonald e colaboradores ocorreu em 2001,
curiosamente decorrido outro período de 18 anos após o trabalho de
Poser. Nos novos critérios continuam a valorizar-se as características
clínicas da doença (quase que inalteradas desde Schumacher) e define-se
de forma objectiva o que significam RM, LCR e potenciais evocados
“positivos”. Com base nestes critérios o doente é classificado de forma
simples como tendo, ou não, esclerose múltipla, havendo lugar à
categoria “possível” caso persistam dúvidas, o que por si só impõe a
repetição dos exames com periodicidade definida. Também são
implicitamente apontadas as técnicas de boa execução da RM (aparelho com
boa definição, incidências correctas, aplicação de contraste) e da
pesquisa de bandas da IgG no LCR (focagem isoeléctrica). Para além
disso, o que é muito importante, dá-se ênfase à possibilidade de
diagnosticar a doença nas formas monosintomáticas (por exemplo doentes
que tiveram episódios únicos de nevrite óptica ou de mielite),
permitindo desde logo o seu tratamento precoce com drogas que modificam o
curso natural da doença.
Crê-se que este estudo representa um grande passo no diagnóstico mais
correcto e mais precoce de muitos doentes, permitindo uma abordagem
terapêutica mais segura. Por outro lado, responsabiliza os serviços de
saúde na capacidade de resposta dos exames subsidiários que devem ser
realizados sempre que necessário, em tempo útil, e segundo os melhores
padrões. Por sua vez, os doentes devem estar bem informados e preparados
para dialogar com o médico assistente, procurando partilhar as dúvidas
nos resultados dos exames: onde foi efectuada a RM? Como foi descrito o
relatório? O LCR foi submetido a focagem isoeléctrica? Quem interpretou
os resultados das “bandas”? Daqui por quanto tempo é necessário repetir a
RM? Já fiz a bateria de exames necessária para excluir outras doenças?
Por fim, têm também os doentes o dever de informar o médico sempre que
surjam novos sintomas, quiçá alertando para patologia diferente ou
concomitante do sistema nervoso.
Prof.ª Dr.ª Maria José Sá
27 de Abril de 2002
Fonte:
ANEM